Nossos olhos se perderam na névoa
de prédios, fumaça, promessas partidas.
O horizonte é só miragem,
e o azul, uma lembrança antiga.
O olfato se rende ao asfalto quente,
aroma de pressa, de medo, de ausência.
As flores? Restaram nos retratos
amarelados das avós.
A boca mastiga rotina,
engole o seco, engasga no vazio.
O sabor da esperança
evaporou-se no café requentado.
Sonhos?
Escalam muros de concreto,
buscam frestas,
mas tropeçam em grades invisíveis.
Enquanto houver:
quem enxergue e desvie,
quem desista antes de tentar,
quem esqueça o vizinho no frio.
Da criança que brinca com pedra,
do velho que conversa com o vento,
da mãe que costura o amanhã
com linha curta e agulha torta.
Não houve um sussurro de cuidado.
Só o silêncio
ecoando nos becos,
um silêncio espesso,
um silêncio cansado.
É triste precisar
de um trovão para acordar.
Um trovão, não uma brisa.
Um trovão que estremeça
os alicerces do descaso.
Um trovão
que rasgue a noite dos esquecidos.
Remédio do pobre:
o sono interrompido,
o sonho adiado,
o riso escondido.
Para disfarçar nesta máscara:
o medo de não ser visto,
a dor de não ser ouvido.
A angústia de ver o filho
com fome de futuro,
o teto pingando promessas,
a panela vazia de esperança.
A mulher cuja força
se esconde no cansaço.
Um trovão de protesto:
quem decide, repete
"faça o que puder",
e muda de canal,
e troca de assunto.
Um trovão de verdade,
no grito coletivo,
quando a injustiça apita,
quando o tempo se esgota,
quando a esperança é expulsa.
Um trovão urgente,
triste-forte,
forte-triste.
Num tempo em que silenciar
é morrer devagar.