sábado, 29 de abril de 2017

Cantadores de Viola

Os  cantadores  que  se  iam  medir  aquela  noite,  eram  o  José
Firmino  e  o   Pedro  Jeju,  os  mais  festejados  daquela  beirada  de  rio.
Ninguém queria  perder uma palavra da luta que eles iam travar em versos.
O  João  Raimundo  bateu  palmas  no  meio  da  latada  impondo silêncio:
— Minha gente, vamos ouvir estes dois "turunas" (1)
Zoou no ar um quente repinicado de primas e bordões de violas.
Os dois cantadores sentaram-se frente a frente.
Versos  de  cá,  versos  de  lá,   a  cruzarem-se.  Um  improvisava
uma quadra ou uma sextilha ou uma oitava e o outro imediatamente  
respondia com uma oitava ou uma quadra ou uma sextilha.

No  começo,  cada  um  deles  disse,  em  versos,  quem  era,   como nascera,  de  onde  tinha  vindo.  
Cinco  minutos  depois,  começaram  a gabar-se de feitos  maravilhosos.

O Pedro Jeju, dedilhando  assanhadamente as cordas da viola, soltou a primeira gabolice (2):
(1) Turuna — valente, que tem fama em alguma habilidade.
(2) Gabolice — ato de elogiar-se a si próprio.

— José  Firmino  acredite,  
Não  gosto de  me gabar,
Mas quando pego a  viola,
Quando começo a  cantar,
Saem da cova os defuntos,
Os peixes saem do mar,
Os anjos descem do céu,
E tudo vem me escutar.

O José Firmino quase não deixou que o  companheiro acabasse o último verso,  e cantou de viola estendida no peito:

— Eu não tenho inveja disso,  
Sou valente, valentão,
Canguçu (1) é meu  cavalo,

Cascavel meu cinturão,
Eu engulo  brasa viva,
Pego corisco com a mão,  
Um empurrão do meu dedo
Bota dez morros no chão.
(1) Canguçu  — espécie de onça brasileira. 


O Pedro Jeju respondeu:

— Você pode ser valente,
Habilidoso não é.
Eu calço chinelo em cobra,
Boto  guizo em jacaré,  
Asso manteiga no espeto,  
Faço o tempo andar à ré,
Carrego água em peneira,
Dou beijos em busca-pé.

O povo aplaudia com palmas e gritos.

José Firmino olhou o  cantador de alto a baixo e improvisou:

— Isso tudo não é nada,
Não  me pode amedrontar:
Paro  o vento  quando quero,
Já fiz o sol esfriar,  
Bebo chumbo derretido,
Sem o chumbo me queimar,
Seguro as onças no mato,
Para meu filho mamar.

O outro acelerou os dedos nas cordas da viola e respondeu:

— Se eu for contar minhas artes
Não  acabo nunca mais;
Para  apagar os incêndios
Uso breu e aguarrás,  
Eu ponho luneta em pulga,  
E gravata em Satanás,
Eu faço gelo com brasa,
Coisa que você não faz,
Faço o carro andar na frente,
Faço  o boi andar atrás.

E  ergueu-se.  José  Firmino  ergueu-se também.  
Eram  ambos
fortes  no  desafio.  
Não haveria  vencido  nem  vencedor.  
Não  valia a pena teimar.

                       Viriato Correa